Por Tarisa Faccion
Quando desceu os últimos degraus desviando dos turistas de roupa de banho, Jorge percebeu que seu corpo acostumava-se com o trajeto. Um gole de café tomado à beira da pia, arrumar-se em dez minutos e os cinco quarteirões até a estação de metrô eram atividades realizadas naquele lugar entre o sono e o mundo. Em três semanas havia adquirido a destreza de identificar os melhores caminhos e se mover entre desconhecidos que, ele presumia, cumpriam também expediente de nove às seis. Alguns rostos repetidos ali na plataforma da estação, no mesmo horário, aguardando o próximo trem. Uma mulher, nos seus cinquenta e poucos anos, todos os dias usava um broche prateado em formato de sol no lado direito do peito, independentemente da roupa que vestisse. Um homem, já de crachá no pescoço, carregava um livro grosso na mão, mochila nas costas com duas garrafas de água, uma a cada lado, que tirava de cinco em cinco minutos para beber.
Uma semana atrás, um discreto assobio fez com que acompanhasse todo o caminhar de um senhor até seu destino. Calça e camisa social, sapato reluzente, a pele enrugada, cabelo úmido cortado para o lado esquerdo. Toda manhã o senhor descia as escadas com cuidado e se dirigia para a marca do último vagão. Sempre a mesma melodia. E assim era, às oito e quinze a música passava. Jorge permanecia parado quando ouvia ao longe, as notas bem marcadas, o som suave que ia aos poucos se aproximando. Hoje, quando virou a cabeça para ver o dono da música percebeu que o senhor estava acompanhado. Após estacionarem, a senhora ajeitou o colarinho de sua blusa e limpou uma marca não aparente no canto de sua boca. O vento veio, balançando o vestido dela. Enquanto a esposa colocava um fio de cabelo no lugar, em seguida dando um leve beijo em sua boca, o trem parou. As portas abriram-se e, com a mão em suas costas, ela ajudou o senhor a entrar, ainda que não precisasse, fazia isso todo dia, de segunda à sexta. O vento foi, a senhora ficou, e ele como de sempre seguiu para o trabalho.
Ainda estava bem claro em sua mente as falas de seu pai: agora sim, você está com a vida arranjada. Agora pode arrumar uma boa mulher e casar. Sua velhice tá garantida. De alguma forma via no senhor o futuro imaginado por seu pai. Mesmo que os tempos fossem outros, o trabalho fosse outro, suas aspirações fossem outras, ainda não tão claras. De algum jeito era um tanto reconfortante saber que em uma semana receberia seu primeiro salário. Um dinheiro seu, garantido, e que suas caixas estavam todas prontas para ocupar o quartinho que alugou no centro. Ficava em um prédio estreito, antigo, espremido entre um buteco e um prédio comercial todo espelhado. Por que é mesmo que alguém achava uma boa ideia um caixote de vidros no calor aterrador do Rio de Janeiro? Só o gosto pelos choques-térmicos, entre a panela de pressão da rua e o ar-condicionado dos lugares fechados, para justificar tamanha sandice.
Imaginou que aquele seria o último dia de trabalho do senhor. Um dia tão especial que sua esposa fora acompanhá-lo até a plataforma. Provavelmente pegou aquele sapato marrom com tiras pretas em uma caixa guardada no último patamar do guarda-roupa. O sapato usado para casamentos e funerais. Um café especial, com bolo assado aquela manhã, derretendo a manteiga passada em cima. Como ele, Jorge, que mal havia começado sua carreira no serviço público, poderia estar pensando no seu fim? Não haveria de reclamar, pois é uma conquista, uma benção, mamãe diria, um privilégio, enfim. Não há de se reclamar em um país de crises recorrentes e injustiças eternas. Aquietou-se um pouco antes de começar a pensar nos processos em suas mãos. Estava ainda bastante perdido, nos procedimentos, e onde cabia nas dinâmicas de seus colegas e chefes.
Por sorte ou destino, no primeiro dia, depois de passar por todos os setores, guiado pelo seu chefe direto, esbarrou com um cara bem interessante, essa seria uma palavra para descrevê-lo. Ainda estava fazendo sentido dos pormenores. Pelo que soube até o momento, Mateus estava lá fazia uns cinco anos, do concurso anterior, e andava como se ali fosse seu quintal. Conhecia todo mundo, ao menos parecia, porque quando passava pelos corredores um oi não bastava, sempre tinha alguma conversa a puxar: e seu filho, tá melhor da gripe? Tá de pé a cervejinha com o Flu na quarta? Já tô terminando a planilha, xá comigo. Semanas depois, calhou de esbarrar com Mateus no fim do expediente. Bora lá pruma gelada. Acabou indo, a cerveja ganhava das caixas por desfazer e o pouco espaço a ocupar com o que nelas restava. Ressentiu-se um momento por ser homem em um mundo de homens que não lhe dera a oportunidade de aprender a lidar com a casa. O gelado da bebida caiu bem no meio das gentes, suor e calor. Estavam em quatro e logo entendeu a importância das saídas pós-expediente. Joana, da área financeira, falava pelos cotovelos, dos filhos, do cachorro e do orçamento que estava estourado por diárias e passagens. Era meticulosa, tanto em casa quanto no trabalho, e abria a boca na hora que a primeira cerveja chegava. Anderson, o mais velho de todos, assumia o posto da experiência. Contava causos de quando desbravavam a amazônia com os equipamentos, inimagináveis hoje, a mapear o Brasil. Mateus era casado, bem casado, porque apaixonado. Toda hora que falava de Elisa, e repetia seu nome sempre, sua cara iluminava. Ela aparecia algumas vezes no fim da noite, ficava até mais tarde atendendo pacientes, era psicóloga. Dali seguia o casal de mãos dadas pra casa. Vendo os dois e lembrando do senhor, Jorge sentiu um pouco de inveja. Não era dado a arroubos românticos, mas pensava de tempos em tempos que não seria de todo mal ter uma companheira. Os namoricos aqui e ali nunca foram pra frente, e devia admitir, não investira de fato. Pode ser que não tivesse encontrado a pessoa. Também duvidava que existisse a pessoa. Na verdade nunca gastara muita energia nesse tema, para um certo desespero da família. Agora percebia-se investindo segundos a mais a admirar seu colega e a mulher seguindo até a esquina da Carioca.
Desde o primeiro dia estava prometido um curso de chegada. Todos os recém-concursados deveriam fazê-lo. Dois meses haviam passado e nada de notícia. O orçamento não tinha sido liberado, era o que se ouvia. Pensou que orçamento era similar à palavra sistema. Quando tem problema em um ou outro, ninguém sabe dizer o que acontece, mas todo mundo sabe que nada há a fazer, senão esperar. Assim seguia produzindo peças para quem chegasse e pedisse, sem conseguir localizar quem mandava ou quem obedecia. Não era exatamente o que esperava, mas ali estava, trabalhando e recebendo. Após três meses de trabalho, foi chamado para uma reunião em cima da hora. Estava nos planos criar um setor específico para a comunicação, destacado da presidência. E um designer era necessário. Carne fresca na área é bastante valorizada nessa hora, ele percebeu quando saiu depois de duas horas com três páginas de caderno preenchidas de demandas a cumprir. Iria mudar de sala logo, e foi apresentado à sua nova chefe, Marina. Ela aparentava ter uns sessenta e poucos anos e sobrevivera ao massacre de Collor no serviço público. Havia sido reintegrada há pouco e trouxe consigo a experiência do setor privado. Comunicação corria em suas veias e mexia com tecnologia como uma criança de dez anos, curiosa e ousada. Jorge, dá uma chegadinha aqui. Ele seguiu pelo corredor, encontrando Marina na entrada de uma sala de vidro. Você vem pra cá direto. Mostrava a sala à frente. Na quarta? Não, amanhã. Ele não respondeu. Tá? Tá bem. Quando seguiu pra casa nem viu o caminho, nem as pessoas, nem os bares, nem o porteiro que o cumprimentou. Chegou em casa, sentou no colchão sem cama por alguns momentos, eletrificado. Tudo iria mudar de novo, logo quando estava se acostumando com a rotina. Sentia uma ansiedade quase boa, se é que isso existe.