A pobreza de crianças e adolescentes no Brasil, artigo de Adrimauro Gemaque
“Como os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto das árvores e nas montanhas, longe de predadores, ameaças e perigos, e mais perto de Deus, devemos cuidar de nossos filhos como um bem sagrado, promover o respeito a seus direitos e protegê-los”, Drª. Zilda Arns Neumann, médica brasileira, fundadora e coordenadora internacional da Pastoral da Criança.
As crianças e os adolescentes foram os mais afetados pela pobreza nos últimos dois anos. Vários estudos realizados já vinham apontando nesse sentido.
Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), antes da pandemia de covid-19 a pobreza na infância e na adolescência, em suas múltiplas dimensões, tinha atingido quase dois terços da população. Em números absolutos, eram cerca de 32 milhões de crianças e adolescentes em situação de privação no país. Para se ter uma ideia da grandiosidade desse número, ele corresponde a pouco mais que a soma do total de habitantes das sete cidades mais populosas do Brasil, segundo o IBGE.
Estudo do Unicef, denominado ‘As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil’, divulgado no dia 14 de fevereiro, possibilitou ao organismo da ONU afirmar que ainda antes da pandemia pelo menos 32 milhões de brasileiros de até 17 anos – 63% dessa população – viviam na pobreza.
De acordo com o estudo, a pobreza multidimensional a que os dados se referem é diferente do entendimento tradicional da pobreza monetária. Ela é o resultado da interrelação entre privações, exclusões e diferentes vulnerabilidades a que meninas e meninos estão expostos como trabalho infantil, acesso à moradia digna, água, saneamento, informação, renda, alimentação e educação.
Objetivando analisar a pobreza multidimensional, a pesquisa utilizou dados do Pnad Contínua (IBGE), cujo último ano com informações disponíveis para todos os oito indicadores é 2019. Foram separados dados sobre renda e alimentação, da Pesquisa de Orçamento Familiares – POF 2017-2018 e outras pesquisas do IBGE até 2021, e sobre educação até 2022.
Como demonstrado no gráfico, em nível nacional a dimensão que mais contribuiu para a pobreza foi o saneamento (21,2%), seguido pela renda (20,6%). As privações afetam crianças e adolescentes no Brasil como um todo, como falta de banheiro de uso exclusivo ou de um sistema adequado de esgoto, e as demais são relativas a um nível de rendimento inferior à linha de pobreza e de pobreza extrema, diz o estudo.
Liliana Chopitea, chefe de políticas sociais, monitoramento e avaliação do Unicef no Brasil, ao mensurar a pobreza em suas múltiplas camadas, a organização busca alertar autoridades brasileiras para a urgência de políticas públicas contínuas com a destinação de recursos suficientes para o enfrentamento de privações que vão além da falta de renda e que resultam em graves prejuízos para o desenvolvimento da população mais jovem.
Percentual de crianças e adolescentes de até 17anos com privação Extrema em 2019, por UFs e dimensão
Achados da pesquisa ainda revelaram, que a pobreza multidimensional impactou mais quem já vivia em situação vulnerável – negros, indígenas e moradores das regiões Norte e Nordeste -, agravando as desigualdades no país. Entre crianças e adolescentes, negros e indígenas, 72,5% estavam na pobreza multidimensional em 2019, contra 49,2% de brancos e amarelos.
Parcela de crianças e adolescentes afetados pela privação de renda
O percentual de negros e indígenas sem acesso à renda suficiente para alimentação é quase o dobro do de brancos e amarelos. No ranking dos estados, seis tinham mais de 90% de crianças e adolescentes em pobreza multidimensional, todos no Norte e Nordeste. Apenas no Distrito Federal e em três estados do Sudeste o percentual de privação de crianças e adolescentes foi inferior a 50% (confira no mapa abaixo).
Crianças e adolescentes com alguma privação em 2019
Ao analisar o recorte da renda, que também permitiu ao Unicef estudar a falta de dinheiro para comprar comida, os pesquisadores chegaram à conclusão de que, em 2021, o percentual de crianças e adolescentes que viviam em famílias abaixo da linha de pobreza monetária extrema – menos de US$ 1,90 por dia por pessoa (R$ 9,85, na cotação atual dólar) – alcançou o maior nível dos últimos cinco anos: 16,1% (em 2017 eram 13,8%). Então, foi possível saber o contingente de menores da renda necessária para uma alimentação adequada. Passou de 9,8 milhões em 2020 para 13,7 milhões em 2021 – um salto de quase 40%.
Com relação à disparidade regional no que significam as privações não monetárias, três estados, Amapá, Piauí e Rondônia, têm níveis acima de 90%, enquanto apenas São Paulo e Distrito Federal apresentam percentual abaixo de 30%.
Pobreza infantil monetária
O panorama da pobreza, quando analisado por dimensões de alimentação e renda, os dois indicadores que chamam mais atenção. Esses indicadores antes da pandemia vinham apresentando queda. Porém, o estudo revelou que entre 2020 e 2021 o número de crianças e adolescentes privados de renda familiar necessária para uma alimentação adequada passou de 9,8 milhões para 13,7 milhões – salto de quase 40%.
Muito embora todos os indicadores avaliados pelo estudo do Unicef tenham impacto em privações das crianças e dos adolescentes, o saneamento básico foi o que apresentou maior percentual. Chegou a 33,8%, seguido pela renda que ficou em 32,9% para a população de 0 a 17 anos.
Distribuição da população de 0 a 17 anos por tipo de privação (em %) – 2019
Conforme demonstrado, os indicadores de saneamento e renda foram os que mais as crianças e adolescentes não tiveram acesso em 2019. Todavia, os números mais recentes analisados da Pnad Contínua de 2020 (IBGE) apontam que as privações atingem quatro em cada dez crianças e adolescentes no país. Apesar de diferenças estatisticamente não significativas, essas proporções eram maiores nos anos anteriores a 2020.
O estudo também analisou o acesso a banheiro e rede de esgoto nos diferentes estados. Nota-se que os índices de privação são maiores no Norte e Nordeste. Com 91,1%, 85,6% e 84% de privações, respectivamente; Piauí, Amapá e Rondônia são os estados que apresentam os índices mais precários. Veja o mapa:
Privação de acesso a banheiro e rede de esgoto em 2020
O estudo do Unicef retrata que a pobreza multidimensional na infância e na adolescência é um fenômeno complexo, com causas diversas e inter-relacionadas, exigindo ações abrangentes e inter-relacionadas.
Os dados apresentados pelo estudo do Unicef revelam que os avanços conquistados na garantia dos direitos de crianças e adolescentes ao longo dos anos em vários campos podem se estagnar e regredir, principalmente em situações de crise, como foi a da pandemia de covid-19. Também ressaltam que os desafios estruturais e as desigualdades regionais, raciais e de gênero persistem no Brasil, apesar de todos os esforços para melhorar as condições de vida de meninos e meninas nas últimas décadas.
Frente a esse cenário de gravidade, é urgente que os gestores públicos nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal) priorizem políticas públicas voltadas para a infância e a adolescência, mesmo em um contexto de crise econômica, para reduzir as privações e retomar o caminho da evolução na proteção dos direitos dessa população.
Adrimauro Gemaque, Administrador, Analista do IBGE e Consultor e Gestão Pública.
Fonte: EcoDebate