Por Tarisa Faccion
– Colocou cadeado?
– Hã? – Silêncio.
– O que você tá fazendo?
– Tô pegando umas meias no varal, mãe!
– Tá bem, vai dormir logo que amanhã é cedo!
– Eu sei, eu sei. Beijo, mãe.
Jorge dobrou as meias e enfiou pelo buraco entre os fechos da mala estacionada perto da porta. Suas mãos suavam dificultando agarrar o metal para fechar tudo. Dormiu bem pouco, com o sono entrecortado de preocupações múltiplas do que diria, como seria, será que teria tempo de ver a cidade com a agenda de oito da manhã até dezenove horas? Se Brasília fosse um pouco como o Rio, tudo atrasaria e sua experiência seria entre ar-condicionados. Da última vez em que acordou lutando contra os pensamentos, colocou o travesseiro sobre a cabeça e apagou exausto.
Acordou animado, gostava de viajar de avião, decolar e aterrizar. Achava por demais engraçada a pompa dos comissários, garçons de luxo. Pediu duas bebidas para acompanhar o saquinho de vinte gramas de amendoim. Quando passou pelo desembarque estava atordoado de fome, o sol do início da manhã invadia o aeroporto e lá na primeira pista reconheceu o logotipo da repartição na lateral da van. Quando aproximou-se deu de cara com sua chefe, um colega seu e Julia! Não tinha a mínima ideia que ela iria participar desse treinamento.
– Tá todo mundo aqui então?, o motorista já colocando a mala de Jorge no bagageiro.
– Oi, gente. – Jorge sorriu simpático, um tanto além da cordialidade possível para quem madrugou e estava todo amassado da micro-poltrona do avião.
O trajeto seguiu nos papos amenos sobre o clima, quantas vezes cada um havia ido à Capital, e também onde cada um ficaria. Foi quando Jorge descobriu que suas proposta de economia talvez não tenha sido um bom negócio. Alugou um quarto num hotelzinho lá para o fim da asa norte, sem metrô, com ônibus escassos, e praticamente desconhecido.
– Sol Vermelho? Esse nome não me é estranho…, pensava o motorista coçando a cabeça. A barriga de Jorge revirava.
– Ah! Sim, acho que é parada de caminhoneiros. Um hotel um pouco antigo. Bom que não foi a mocinha aí que foi parar lá, riu-se sozinho. Seguiram no silêncio até a sede da Instituição.
Ao adentrar o prédio moderno de vidros, elevador inteligente que falava mais que o necessário, pessoas de crachá iam e vinham. Essa era a primeira vez que Jorge usava o crachá que recebeu uma semana atrás. Nunca precisara dizer quem era no Rio, bastava conhecer os seguranças que estava tudo certo. Aqui mostrou a identidade e tirou foto, que deve ter ficado pior que 3×4, logo na entrada. Ganhou outro crachá, esse temporário, de visitante. Pensou que agora devia estar preparado para Capital, dois crachás, fichado na portaria, riu por dentro.
Subiram os quatro para o quinto andar e, no apertamento do caixote prateado, Jorge sentiu Julia, que estava à sua frente. Como podia tanto frescor após essa maratona? Um perfume cítrico e orvalhado. Passariam bastante tempo juntos, e Jorge percebia-se atento a cada detalhe novo que pudesse reter em sua memória.
A agenda contava que seriam recebidos pelo assessor de comunicação mas assim que chegavam às secretárias para se anunciarem, a porta atrás delas abriu-se e de lá saiu o próprio Presidente da Instituição.
-Ah! Chegaram bem? Venham, quero dar uma palavrinha com vocês. Olás, Bom-dia daqui e dali e estavam agora acomodados em volta da longa mesa de madeira escura, lá na parede a foto da Presidente da República.
– Um cafezinho, hã?, O Presidente acenou pra secretária e em cinco minutos chegou a copeira com a bandeja. Um pote de biscoitos amanteigados. Jorge pegou um, intercalando pequeninos goles no café, mais um biscoito. Na próxima vez foi com quatro dedos e assim sentiu que agora podia concentrar-se no que acontecia.
Como a hierarquia pede, o Presidente assumiu a dianteira da conversa. Após alguns minutos, sua chefe começou a falar, sendo logo interrompida. O telefone tocou e o recado foi anotado, o Presidente retomou dizendo da expectativa daquela viagem, Marina tentou iniciar uma fala da necessidade de uma agenda, foi cortada novamente, o Presidente tinha uma entrevista, anunciou a assessora abrindo a porta da sala. Saíram tão rapidamente quanto haviam entrado.
O dia seguiu sem maiores acontecimentos, não tiveram a reunião pois o assessor de comunicação foi chamado para outra. O treinamento começou com ameaças veladas, da responsabilidade dos procedimentos, das idas e vindas dos processos administrativos, a luz tênue que iluminava o professor. Servidor há vinte e cinco anos, de roupa social, camisa para dentro da calça que destacava a barrriguinha onde apoiava-se para esperar as respostas tímidas dos alunos. Alunos hão de ser sempre alunos. Professores também. Seja na sala de aula, seja em treinamentos em salas iluminadas com projetores de foco vacilante. Quando a luz acendeu, Jorge parecia saído de um transe. Júlia já estava na porta com a bolsa vermelha à tiracolo.
-Vamos pra onde?
-Acabou por hoje? Jorge, atrapalhado, juntava a apostila e as canetas.
-Expediente encerrado!, piscou Julia.
Marina perdeu-se pelos corredores labirínticos com sua pasta de pendências para a peregrinação pelos setores. “Vai que ainda acho alguém.”
Douglas postou-se ao lado de Julia, curiosamente desperto como não estivera o dia todo.
– Vamos!, Julia saiu com Douglas e a bolsa à tiracolo. Jorge foi atrás.
Cortaram os retornos e curvas à pé como bons cariocas, já escuro da noite, e terminaram num buteco à lá Brasília que tocava pagode e servia petiscos da culinária nordestina, debaixo de um viaduto.
– Foi o primo da minha amiga de Goiânia que me disse daqui. Gilberto, um cara engraçado não fosse seu atabalhoamento.
Jorge riu bastante. Atabalhoamento, palavras que só Julia dizia. Foram aos poucos aliviando-se da tensão do dia, a liberdade sem o olhar das chefias. Era uma terça-feira que por algumas horas disfarçou-se de sexta. Não ficaram muito, cada um iria para um lado e amanhã tudo começava de novo às oito da manhã. Por mais três dias. Jorge torceu que a isca de pirarucu durasse até o fim.