Por Tarisa Faccion
A semana chegou ao fim com a chuva inesperada depois de meses de seca na capital. Jorge e os colegas correram para a van com suas malas, pastas e corpos moídos das cadeiras do auditório onde passaram o dia inteiro. Um filete de sol ultrapassou as nuvens pesadas quando chegavam ao aeroporto. Filas enormes, sexta-feira. Jorge aguardava sua vez, exausto e impaciente, quando percebeu que Julia, no guichê da companhia aérea, demorava por demais, e gesticulava intensamente.
– O que tá acontecendo?, Julia que estava com as mãos nos cabelos, de cabeça baixa, respirou fundo antes de responder com um fio de voz.
– Overbooking. Acredita?
Jorge não respirou e, antes que a atendente abrisse a boca para falar, começou e foi com tudo. Trezentas palavras por minuto, mais de vinte argumentos, algumas ameaças de processo e terminou com:
– Eu não fico mais uma hora aqui! Você dá seu jeito de colocar a gente nesse avião, agora! Julia com os olhos arregalados abriu um sorriso de vitória, ainda sem conhecer o desfecho da situação.
– Ufa, finalmente… quase viajamos na asa do avião, mas tá “tranqs”. Julia olhava a coleção de mil cabeças às suas frentes, aliviada.
Jorge não disse palavra. Exaurido do esforço de brigar. Podia contar numa mão as vezes que havia discutido, levantado a voz para alguém, durante toda sua vida. Não estava acostumado com o que essas emoções faziam na sua constituição conciliadora. O corpo estava duro, a voz parecia ter sumido de suas cordas vocais e num movimento procurou ajeitar-se na poltrona. Por descontrole acabou com a perna esticada no corredor e sua mão esquerda pousou desavisadamente na de Julia. Ela agarrou seus dedos e assim ficaram por alguns momentos.
——
De volta à rotina, essa pesou mais que antes. Por mais desafios que a viagem tivesse tido, foi um ar de novidade no quase um ano de trabalho. O tempo foi passando, e dia após dia acordava às sete da manhã, tomava café, ia para o trabalho, saía para almoçar o pf da esquina, dava uma volta para ir ao banco, às vezes chegava na farmácia. Mais umas horas de trabalho e, porque ainda não era horário de verão, tomava o rumo de casa quando já era noite. Via o jornal na tv, tomava um banho, comia qualquer coisa e tudo repetia quando o sol nascia.
Agora percebera o quanto o trabalho ocupava seu tempo. E sentia sua vida passando sem nenhuma variedade ou atrativo. Foi numa terça-feira que sua irmã Catarina ligou, “me encontra às oito?! Tô pensando no aniversário de mamãe e você vai me ajudar.”
Se era porque Catarina era sempre assertiva ou porque era sua irmã mais velha, Jorge era impelido a obedecê-la. Chegou na sua casa com um pão fresquinho pronto para um café e foi recebido com uma cerveja gelada. Catarina falou, por mais de hora, sobre a festa surpresa para Dona Ana. Os pormenores estavam todos pensados, e Jorge sentiu-se simplesmente como uma orelha. Catarina enumerou os convidados numa folha de papel, entregou-lhe o cartão da confeitaria para buscar o bolo já encomendado. Largou a caneta e foi até a geladeira pegar outra cerveja. Quando virou-se e olhou para Jorge, enxergou-o pela primeira vez na noite.
– O que foi? O que é essa cara?
– Sei lá… Jorge tomou alguns segundos para localizar-se dentro de si.
– Desembucha! Catarina tirou a tampa com a mão, colocou a cerveja na frente de Jorge e olhou bem fundo em seus olhos.
– Vida besta!
– Que vida?
– A minha, ué. Tô cansado… sem estar cansado, sabe? Porque tudo sempre igual. Nada acontece…
– Ok, vamos lá… por partes!
E daí Catarina, com seus talentos de síntese e de produtora, colocou-se à serviço de Jorge. Preencheu umas três folhas de papel com tudo o que ele falou. E como falou! Surpreso que tivesse tanto mesmo para falar da própria vida, ou da falta de vida que sentia. Exausto ele concluiu com:
– É isso. Ou mais ou menos isso.
– Tá bem, vamos ver o que temos aqui…
Catarina cheia de energia e com aquela expressão de ter descoberto o Santo Graal, revelou com entusiasmo.
– Você está é entediado!
– Aff, sério?, riu com sarcasmo.
Jorge seguiu para casa à pé, uma caminhada longa, deixando para trás o metrô e o ônibus. No dia seguinte acordou e foi tomar café na padaria. Carregou no bolso o papel onde sua irmã havia listado diversas ideias de atividades que ele poderia fazer. Por mais que não tivesse ficado animado com nenhuma delas, alguma chave dentro de si havia mudado. Num dos dias que se seguiram, pegou um caminho diferente para chegar no trabalho, e como lampejo veio a memória de um anúncio que tinha visto no quadro de avisos.
Jorge tirou a caneta que estava no bolso da frente da sua camisa e colocou seu nome no fim da lista. Sexta à noite seria a audição para o coral. Quando afastava-se, viu de canto de olho algo que lhe chamou a atenção. Na segunda linha estava escrito: Julia Veras. Jorge seguiu com um frio na barriga e um sorriso no rosto.