População envelheceu e políticas públicas não evoluíram. Há dor e desamparo, narra Rosana Onocko, psicanalista. Mas ações inovadoras podem mitigar o problema, ao restabelecer laços sociais que a vida contemporânea desfez
Os dados do último recenseamento demográfico confirmaram algo já aguardado: a população com idade acima de 60 anos cresceu e agora representa 15,1% dos brasileiros. Espera-se que o número de idosos continue aumentando. Mas como proporcionar que tenham uma vida digna e saudável? Um estudo recente, publicado na revista Cadernos de Saúde Pública da ENSP/Fiocruz, buscou investigar a prevalência da solidão entre pessoas com mais de 50 anos. Constatou que 16,8% sentem-se sós o tempo todo e 31,7%, às vezes.
Rosana Onocko-Campos, psicanalista, professora da Unicamp e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), acredita que o Brasil não está preparado para o envelhecimento de sua população. Em seus trabalhos acadêmicos, ela testemunha as dificuldades das famílias para cuidar de seus idosos.
O que acontece, muitas vezes, é que algum membro precisa parar de trabalhar ou estudar para cuidar de um parente mais velho. Segundo o IBGE, essa função vem ganhando mais importância: o número de familiares que cuidam de pessoas de 60 anos ou mais saltou de 3,7 milhões em 2016 para 5,1 milhões em 2019. Esse é, em larga escala, um trabalho não remunerado, executado por pessoas da família em 78,8% dos casos. E há ainda 10,9% de idosos com limitação funcional que não recebem nenhum apoio.
O Estado não está preparado para esse fenômeno, que tende a se intensificar. “Nossa cobertura de seguridade social, e mesmo do SUS, não se organizou até agora para esse aspecto. Se organizou olhando para o Brasil dos anos 1980”, alerta Rosana. Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), que poderiam melhorar o atendimento de idosos, inclusive na saúde mental, foram desmontados – algo que só começa a ser revisto agora, com a criação das Equipes Multiprofissionais.
A atenção básica também falha em controlar as doenças crônicas como diabetes e hipertensão, comenta Rosana. Essa seria outra medida muito importante para garantir o envelhecimento saudável, que proporciona mais autonomia às pessoas idosas. “É um círculo vicioso que tem a ver, para mim, com a desigualdade, a pobreza, isso que eu estou chamando de uma efetividade ainda baixa do nosso sistema de saúde para evitar essas complicações”, analisa.
Sobre a solidão, Rosana enxerga que há um fator social: “Tem a ver com esse ritmo de vida e de trabalho acelerado, da uberização, da precarização. As pessoas estão muito tempo fora de casa. O idoso não tem essa velocidade. Então essa forma de produção econômica o despreza. Mas poderia haver uma série de espaços em que os idosos autônomos poderiam contribuir muito, inclusive no trabalho de cuidado”.
Mas Rosana acredita que é preciso ir muito além para melhorar a vida dos idosos de fato. Para ela, um dos motivos principais para a solidão e a depressão entre pessoas mais velhas é a falta de espaços de convivência social. Uma das transformações possíveis seria a construção de centros de convivência espalhados pelos bairros. Espaços frequentados por pessoas de muitas gerações, onde houvesse cuidado e apoio mútuos.
Um projeto citado por Rosana que integra os idosos à vida social foi posto em prática na Holanda. Lá, estudantes podem habitar gratuitamente residências de idosos, em troca de 30 horas de trabalho semanal. Mas não se trata exatamente de tarefas práticas, mas de convívio: os estudantes podem usar o tempo para acompanhar os idosos até o banco, fazer compras para aqueles com restrição de locomoção ou mesmo batendo papo por algumas horas. Já no Japão, onde pessoas com mais de 65 anos são 28% da população, há iniciativas de creches em casas de repouso, onde velhos e bebês podem passar o dia convivendo.
Nas cidades brasileiras, esse contato social historicamente se dava nas praças centrais. Mas Rosana percebe que esses espaços estão desaparecendo. “A sociabilidade tem mudado muito. As pessoas estão mais sozinhas, para dentro de casa”, lamenta. O próprio repertório cultural das periferias, para ela, está empobrecido – isso sem falar na violência e nos acidentes de trânsito, que tornam a vida externa muito perigosa aos idosos.
Rosana exalta os espaços culturais onde pessoas idosas podem conviver. “Eu acho que essas ideias são super criativas e importantes, para recompor também um tecido social brasileiro que está muito segregado, continua muito segregado. Centros onde uma pessoa possa ir para fazer crochê e conversar com cinco amigas. Já é ótimo, não precisa necessariamente de um psicanalista”, reafirma. Para ela, o Estado pode incentivar a criação desses espaços.
“Eu acho que poderia ter alguns mecanismos de agenciamento nos bairros, nas cidades. Uma senhora de 60 anos, aposentada, pode por exemplo ficar com crianças que vivem na mesma rua, ler história para elas um dia por semana, por exemplo. É o cuidado mútuo. Eu acho que essas estratégias ajudam a recriar o tecido social, e a gente tem vivido momentos tão difíceis, que eu acho que seriam bem-vindas no contexto brasileiro”, termina Rosana.
Fonte: OutrasPalavras.net