Faz tempo

Por Tarisa Faccion

Com a chave na fechadura, Jorge podia escutar o tilintar de travessas na cozinha. Abriu e pegou sua mãe com três fôrmas de diferentes tamanhos e cores nas mãos, pousando-as na bancada em câmera lenta.

– Menino, mas já não te falei pra entrar pela sala? Os convidados tudo lá – pendeu a boca de canto em reprovação. Fazia um tempo que Jorge tinha mudado da casa dos pais após assumir o cargo público e a ficha ainda não tinha caído para a mãe em seu longo processo para acostumar-se com o ninho vazio –  um filho, uma filha e agora o menino que foi embora aos trinta e três anos.

– Ainda sou de casa, né? E minha moral, como fica?, ele rodeou a bancada, deu um beijo na testa da mãe, pegou a travessa com a salada e seguiu para o corredor.

Pela ponta dos dedos, Jorge catou o pedaço de frango responsável pela poça de gordura na sua calça e olhou para o rosto apreensivo de Pedro. Os olhinhos praticamente escondidos por debaixo da cabeleira preta cortada em formato de cuia. Pedro tinha uns cinco anos e era impossível de se segurar desde que dera os primeiros passos. Agora estava na fase de querer fazer tudo sozinho. A tentativa de comer por conta própria precisaria de alguns ajustes, pensou Jorge.

– Tá tudo bem, moleque. Aqui ó, jogou o pedaço de peito pro alto, acertando em cheio a boca, explodindo uma gargalhada enorme do menino, que abriu a alegria na casa.

Dona Ana dedicara-se ao preparo do almoço como se fosse pro Papa, o marido provocou do outro lado da mesa, no que foi solenemente ignorado por ela com um quase sorriso afetuoso. E, como nunca fora pessoa de desperdiçar qualquer coisa ou oportunidade, engatou o assunto seguinte:

– Vocês viram que linda a mensagem do Papa hoje? Mandei para vocês.

– Mãe, pelo amor de deus! Esse texto do Papa tá rolando tem uns cinco anos…, Catarina repreendeu longamente sobre a inocência da mãe com as correntes que todo dia chegam no celular.

– Não importa, é bonito! Releia! Dona Ana serviu mais duas colheres de maionese de batata no prato da filha sem obedecer os “para, tá bom, chega”. Catarina sempre tão sabida de tudo, queria que ela soubesse também dos tipos com quem se mete. Isso não sabe.

– Filho, você não tem um presente para mamãe? O pai ajeitando a gola da camisa pólo azul, que variava com as brancas, as cinzas, as verdes, nunca vermelhas, a cada dia. Pedro pulava do sofá para o chão e subia no outro, fazendo da casa da avó o mais divertido parque de obstáculos.

– Aquele presente que você fez pra ela na escolinha, insistiu pacientemente o pai.

E num pulo maior que todos, Pedro caiu no chão correndo direto para a bolsa do pai. Abriu e pegou um papel bege, dobrado em quatro partes, com um laço em volta e uma bolota vermelha que precisava de muita boa vontade para lembrar um coração. Correndo ainda, freou a um passo da mãe, e esmagando o envelope nos dedos, tirou a franja do rosto.

– Pra você, mamãe, no seu dia! Entregou pomposamente antes de seguir correndo pelo apartamento. Todos os “ahs” surgiram, sobrepostos pela fofura e tradição esperada, seguidos pelo pavê de pêssego em calda, a discussão de quem vai lavar a louça, vamos passar um cafézinho? E assim a tarde seguia chamando a noite que vinha rápida pela janela de domingo, anunciando o fim do encontro de família. Todos despediram-se e Jorge resolveu ficar. Caçula agarrado na barra da saia da mãe, provocou Catarina com sua tigela de doce pra casa nas mãos. Mandou um beijo pelo ar, saindo como vento de trovão que era.

É verdade que ter neto é maravilhoso, ela pensava. Também gostava bastante de produzir esses encontros de família. Sua vida era boa, tranquila. E um vazio invadiu seu peito. Cada um tinha sua rotina, seu trabalho, tendo seus próprios filhos. Agora era ela e o marido, independente que só, tirando tudo no que dependia dela: aquele pijama dobradinho em cima dos lençóis, o chinelo milimetricamente disposto ao pé da cama. Dona Ana ajeitava a mesa de dez lugares, o marido na frente da tv. Passa um pano aqui, puxa aquela cadeira ali, um pé de uma delas preso. Ajoelha-se com alguma dificuldade e, quando vai desdobrar o tapete enrugado, encontra a cartinha de Pedro. Parecia seda, o papel mole, como se sua mão grossa de trabalho pudesse desfazer em um deslizar a delicadeza do presente. Um calor subiu pelos seu pescoço e se sentia ruborizar. Largou a cartinha no chão porque aquilo que veio não estava ali, mas há quarenta anos, guardado numa caixa de sapato por entre quinquilharias no quarto de despensa.  

O ruído de fundo dos aparelhos de ar condicionado criava a nuvem sonora do sono do bairro, um cachorro uivava ao longe, alguma criança que chora pedindo mamá, e o silêncio avassalador abatia-se sobre Dona Ana. Com o vestido jogado sobre as pernas abertas, secou a mão em seus panos e abriu a caixa. Quatro montinhos de cartas, cuidadosamente agrupados por fitas laranjas de cetim em laço. Desfez vagarosamente o maior, as marcas do tempo gritavam na variação de cores do tecido, nas manchas amareladas no papel – da gordura da despensa? Das lágrimas? Do perfume que usou aquele dia antes de sair para encontrar com ele pela última vez?

Dos mistérios da existência, o tempo expandiu-se, cabendo ali todas as lembranças, anuviando o presente, sentindo tudo. Não leu em ordem, leu cada carta, umas só o começo, porque não precisava das palavras para reviver, ou porque o capítulo tocado continuava por demais intenso, ainda, depois de tantos anos. Exausta e energizada, quando os primeiros pássaros já cantavam na amendoeira da janela, Dona Ana sentiu a vida renascer. A carta em sua mão, endereçada ao amor, lera para si, sem saber porquê, como, o que acontecia. Ouvia sua voz, da Ana, ainda não Dona, apaixonada. A mensagem era endereçada a si, desta vez, quarenta anos depois. “Amor, faz tempo que não escreve.” Dobrou essa carta e dormiu com o papel debaixo do travesseiro.

Na manhã seguinte, após o café, quando o marido saiu para encontrar os colegas no centro, fechou a porta com decisão. A da sua, agora, desejada solidão. Largou o pano de prato molhado em cima do sofá, seguiu para a ponta do cachimbo da sala e olhou, sem fixar em nada, a rua pela janela, com os dedos pousados nas micro-folhas-fartas da avenca. À sua frente, a mesinha de sua mãe, lugar dos bibelôs até então. Puxou um banco da parede ao lado, sentou-se sem desviar a vista do verde, abriu a pequena gaveta de onde tirou o caderninho usado para recados. Caneta na mão, começou a escrever.