Primeira infância e saneamento básico têm a ver com o futuro das crianças?

Artigo de Adrimauro Gemaque

A situação mais crítica das escolas está na região norte do país, onde menos de 10% das escolas têm acesso a serviços públicos de esgotamento

Os números mostram situação caótica em que se encontram os dois setores no país.

O conceito de primeira infância está registrado no Marco Legal da Primeira Infância, através da Lei nº 13.257/2016. Conforme a referida Lei, a primeira infância é o período que vai da gestação até aos seis anos ou 72 meses de vida da criança. Esse instrumento legal veio para garantir os direitos relacionados a essa etapa inicial da vida das pessoas.

O Marco Legal do Saneamento Básico, por sua vez, foi sancionado em 15 de julho de 2020 com a meta de universalização do serviço em 2033. Isso significa que até lá o país deverá oferecer a todos os cidadãos, por meio de empresas públicas ou concessionárias privadas, água tratada e coleta de esgoto e lixo nas áreas urbanas.

Então, existem dois instrumentos legais importantíssimos que visam a proteção da vida na primeira infância. No caso do saneamento básico, a proteção também é estendida a todos os brasileiros citadinos. Todavia, os números que aqui seguem mostram a situação caótica em que se encontram a primeira infância e o saneamento básico nacionais.

Ora, quase 35 milhões de brasileiros, o que equivale a 16% da população do país, não tinham acesso à água, em 2020, e cerca de cem milhões de pessoas, ou seja, 47%, não tinham acesso a serviços de esgoto, no mesmo ano. A informação é do Instituto Trata Brasil, organização da sociedade civil.

A falta de um acesso universal ao saneamento básico tem influência direta na saúde pública, com prejuízos especialmente nos primeiros anos de vida dos habitantes que ficam expostos a infecções, verminoses, gastrenterites, desidratação, hepatite A e doenças respiratórias, com efeitos também em seu desenvolvimento cognitivo e emocional (MOREIRA e EUZÉBIO, 2022). Para os especialistas, o saneamento básico é vital para a primeira infância.

Ainda de acordo com o Instituto Trata Brasil, a falta de saneamento gerou mais de 270 mil internações em todo o país, em 2019. A região nordeste registrou 113,8 mil casos, o maior número registrado desse tipo de internação. No Sudeste, foram 61,8 mil internações, enquanto o Norte teve 42 mil. Essa região tem média de 23 internações por dez mil habitantes, índice acima da média nacional, que é de 13 casos por dez mil habitantes.

Um milhão e meio de crianças morrem de diarreia a cada ano em todo o mundo, segundo dados levantados pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) em 2015. Noventa porcento dessas mortes estão ligados à água contaminada, falta de saneamento e hábitos de higiene, segundo o próprio Unicef.

Estudo feito por esse mesmo organismo das Nações Unidas apontam que a diarreia é a segunda maior causa de mortes no mundo em crianças abaixo de cinco anos de idade. Cerca de 88% das mortes por diarreia no mundo são causados pelo saneamento inadequado. A pneumonia é a maior responsável pela morte individual de crianças, tendo matado oitocentas mil em 2019.

Artigo publicado no ano de 2020, pela Associação Catarinense de Medicina (ACM), aponta impacto no desenvolvimento das crianças em ocorrências de disfunções no controle do desenvolvimento representadas pelas dificuldades de organizar, planejar e executar as ações motoras.

As disfunções também são consequências diretas da falta de acesso à água. O artigo revela ainda que o déficit motor pode gerar prejuízos durante toda a vida do indivíduo, já que se refere à capacidade de realizar uma sequência de movimentos intencionais e conscientes e à manipulação de materiais e ferramentas.

De acordo com o Instituto Trata Brasil, o tempo de educação formal no país de um jovem que habita uma residência com saneamento básico é 4,1 anos superior ao de um jovem sem água e esgoto.

Nota técnica lançada em 2020, pelo Programa Conjunto de Monitoramento da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do Unicef para Saneamento e Higiene, atestou que o Brasil tinha 39% de suas escolas sem estruturas básicas para lavagem de mãos. Quase metade das unidades, 49%, não tinham acesso à rede pública de esgoto.

Neste contexto, a situação mais crítica das escolas está na região norte do país, onde menos de 10% das escolas têm acesso a serviços públicos de esgotamento. No Acre, por exemplo, apenas 9% das escolas públicas têm acesso à rede de esgoto.

Para Thiago Modenesi, historiador e doutor em educação, (…) o período do 0 a 6 anos é o ciclo que mais importa do ponto de vista da construção da criança, e aí o ambiente onde ela vive importa porque interfere diretamente na sua saúde e no seu desenvolvimento cerebral.

Thiago Modenesi acrescenta que (…) uma primeira infância legal amplia a chance de ter um pleno desenvolvimento na vida escolar, acadêmica e profissional. Ele ressalta, também, que a pandemia da Covid-19 agravou o problema e acentuou um obstáculo antigo ao desenvolvimento do país: a desigualdade.

O artigo publicado pela ACM aponta que a falta de saneamento básico também gera reflexos financeiros, tanto para os familiares diretamente envolvidos, como para a sociedade e órgãos governamentais. Está evidente a precariedade das estruturas de saneamento básico no Brasil. Uma universalização prometida apenas para 2033 é um tempo longo demais para mitigar o problema.

A Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que desde 2007 elege a primeira infância como a sua principal causa, agindo para transformar a vida de crianças do nascimento até aos seis anos de idade, principalmente as mais vulneráveis, abrindo caminho para um futuro com mais perspectivas, aponta três fatores fundamentais no desenvolvimento na primeira infância: desafios, investimentos e importância.

Desafios – São muitos os entraves que ainda separam as crianças brasileiras de um cenário onde todas elas possam desenvolver todo seu potencial e receber o afeto de que precisam. São obstáculos – novos e antigos – que permeiam as áreas socioeconômicas, educacionais e mesmo as que envolvem saúde e políticas públicas.

Os desafios começam logo no nascimento com a taxa de mortalidade infantil no Brasil, que é de 13,3%, segundo o IBGE. Quando se observa a taxa de mortalidade infantil por estados, o Amapá lidera o ranking com 22,6%, muito embora nos últimos anos venha em declínio. Todavia, para um estado que possui população estimada em 877 mil habitantes, mudar esta realidade é um desafio imposto à gestão pública do estado e dos municípios.

Investimentos – O melhor investimento para o futuro das crianças é aquele que atende as necessidades urgentes do presente e, principalmente, o dever. É assim que deve ser trabalhado o investimento na primeira infância.

A ciência já mostrou que se melhorarmos as condições de vida das crianças mais vulneráveis, garantindo a elas saúde, afeto, nutrição, segurança e educação de qualidade, aumentaremos muito a possibilidade de que tenham um futuro melhor. Quanto antes esta intervenção acontecer, mais chances teremos de que esses mirins alcancem o seu máximo potencial.

Estudos mostram que isso reduzem o risco de envolvimento em atividades criminosas, as taxas de evasão escolar e o desenvolvimento de comportamentos agressivos.

Existem também razões econômicas para se aproveitar a janela de oportunidades da primeira infância. Cada dólar investido traz até sete dólares de retorno para a sociedade. Crianças que conseguem ter acesso à educação de qualidade conseguem desenvolver habilidades que acompanharam por toda vida escolar até ao mercado de trabalho. Suas chances de ocupar os melhores empregos e ganharem melhores salários aumentam em 25%.

Importância – A conta é simples: uma primeira infância com cuidados, amor, estímulo e interação pavimenta o caminho para que a criança aproveite todo o seu potencial. Nasce um adulto mais saudável e equilibrado. E floresce uma sociedade com mais valores.

Portanto, considerando a importância dos primeiros anos de vida das crianças, que serão os futuros adultos, o tema primeira infância se insere em um plano mais abrangente sobre igualdade e oportunidades. Os desafios estão colocados especialmente na expansão da cobertura do atendimento e no aumento da qualidade dos serviços a serem ofertados, muito embora existam dimensões e problemáticas comuns em todas as administrações.

“Se mudarmos o começo da história, mudamos a história toda”. Raffi Cavoukian – Fundador da Honouring.

Adrimauro Gemaque, Administrador, Consultor, Analista do IBGE e Articulista.

Fonte: EcoDebate