Ramais

Por Tarisa Faccion

Só quem trabalha numa repartição grande tem a ideia das cadeias múltiplas que se formam pelos ramais. Um ramal é uma seqüência de três ou quatro números que, ao serem digitados no telefone, alimentam intrigas, fazem os papéis andarem, combinam almoços, resolvem pepinos, complementam as notícias do rádio-corredor e acendem paixões.

Após ganhar a mesa com vistas envidraçadas, Jorge recebeu um telefone e uma pasta com a lista enorme. No início abria e fechava a pasta, embolava o plástico das páginas nos dedos, e fazia questão de mantê-la no topo de sua pilha de documentos. Com o tempo, colecionou papeizinhos colados ao telefone, os ramais de sempre: sua chefe, Mateus, a Julia da produção gráfica, o protocolo. Decorou esses antes que os lembretes perdessem a cola, o que aconteceu bons meses depois, um a um. O da Julia ele refez, colando-o no centro do aparelho. Não podia perder tempo vasculhando páginas porque todo assunto que tratava com ela era urgente. E não confiava na sua memória para momentos de pressão. Ignorava que o número de Julia, junto com o cantar da sua voz, os erres carregados e os esses lisos estivessem já bastante fixados em seu labirinto mental e emocional.

Porque Jorge era metódico desde pequeno, gostava de separar as coisas: assuntos, áreas, cores, formas, pessoas, e grupos. E também momentos. Lá vem o certinho, zoava a irmã quando ele arrumava a gola da camisa do uniforme antes de fechar o portão do prédio. Nos compartimentos e classificações, criava formatos de comportamento, alguns alimentados pelas convenções culturais e outros bem particulares. Assim sendo, Julia era sua colega, localizada no setor de projetos especiais, do ramal 4532, para onde ligava em estágios específicos de seu trabalho. A sala dela ficava no quarto andar, e, por ser andar par, pegavam elevadores diferentes no saguão principal. A sua rotina era em cima de pranchetas e a dela tinha muita rua. Imaginava que ela fosse alguns anos mais nova, pela energia da voz, não pela maturidade. Com Julia procurava manter o assunto em trabalho, ficando por demais sem jeito quando, em diversas vezes, ela misturava informações sobre os tipos de papéis com algum comentário de que sua mãe mandara um carregamento de pamonha por um primo seu, que chegaria depois de amanhã e ela precisaria sair correndo para a rodoviária no horário de trânsito atrás de Marcelo, o primo, que iria fazer a baldeação pra Região dos Lagos, só tinha trinta minutos entre um ônibus e outro. Verdade que Jorge, para além do sem-graça, ficava feliz com a coisa fora de lugar, os assuntos misturados, quando estes vinham pela voz de Julia.  E antes mesmo que ele tomasse impulso de falar de si, ia lá a moça correndo para a rua, ver a prova na gráfica. O tanto que conhecia dela, suas histórias, pessoas e lugares ainda não tinha um rosto.

Entre uma demanda e outra, num pré-feriado, Jorge largou os lápis.

— Fome, saiu informando a alguém e a ninguém específico. As mãos dentro do bolso da calça dobrando e redobrando as duas notas de dinheiro. Abre elevador, vai e vem de gente, e o saguão do prédio estourado da luz do sol do fim do dia refletido na bancada.

— Um pingado e uma coxinha, Naldo!

Demorou pouco menos de dez minutos, engoliu a coxinha e queimou a boca com o café. Parecia deslocado com a vizinhança já em clima de dia de jogo e feriado. Garrafas suando nas mesas, falatório e risadas, os de camisa de time transbordando nervosismo nos empurros e tapas de oi, era final de campeonato.

Jorge largou as notas em cima do balcão e seguiu a passos rápidos pela esquina, diminuindo o ritmo à medida que se aproximava do saguão. Duas entradas, separadas pela parede adornada de micropaletas e a placa de inauguração do prédio. Seu corpo foi pela rotina, mas uma perna ficou, como que desmembrada, com vontade própria, para o lado esquerdo. Largou então do controle e seguiu a sua vontade. Apertou o número quatro. Mais pessoas entraram e apertaram cada um dos andares anteriores. Jorge respirou porque ganhara mais tempo. Para que não sabia. Para ter coragem. Não era nada demais, dois colegas encontrando, conhecendo-se pessoalmente. Que mal há? Nenhum. Que bobeira! Colocou as mãos nos bolsos, não sem antes ajeitar a camisa e o cinto.

A porta abriu e Jorge seguiu pelo corredor da direita, meias paredes pelas quais via o movimento. Pelo canto do olho percebeu uma cabeleira vermelha passando lá do outro lado em sentido contrário. Será Julia? Ela era chamada de malagueta, já ouvira falar. Seguiu em frente, sem saber se tinha visto mesmo algo, ou fora algum efeito da luz de fim de tarde.

— Ela acabou de sair, respondeu a secretária sem levantar o rosto da tela. A adrenalina do sangue de Jorge evaporou em um segundo, e quando percebeu, estava já de volta à porta do elevador, imerso em algum lugar que não ali.

– Segura!! – Jorge esticou o braço instintivamente para o vão da porta que fechava e sentiu uns dedos gelados que pegaram nos seus para largarem em seguida quando a porta abria devagar, milhares de segundos. O sol invadiu o cubículo, atravessando a cabeleira vermelha em ondas. A adrenalina voltou com tudo.

– Julia?

– Jorge! A moça abriu um sorriso. Agora o erre puxado tinha um rosto. O rosto.